Factos da nacionalização de banca angolana

No caldeirão político português que se seguiu ao golpe de Estado que, em Abril de 1974, derrubou o regime fascista, o precário poder revolucionário que se instalou em Lisboa, fortemente influenciado por forças de esquerda, nacionalizou, primeiro, os três bancos emissores implantados no império colonial, para, nos meses seguintes, já em Março em 1975, tomar todos os outros, com reflexos para o carácter estatal da propriedade da banca angolana, daí, até às reformas económicas do início dos 90.

Essa verdade pouco conhecida, destapada num artigo publicado neste jornal, em 2019, pelo economista Mário Nelson (um protagonista de evolução económica remota e recente do Estado angolano), desmistifica a ideia mais geral e equivocada de que, em Angola, a banca foi nacionalizada pelo poder marxista que se estabeleceu no país a 11 de Novembro de 1975, o qual, apesar de ter nacionalizado a produção, revelava-se cauteloso nessa questão, como vai-se ver mais adiante, na questão da “intervenção na banca” que deu lugar à instituição do 14 de Agosto como “Dia do Trabalhador Bancário”.

De intrincado, o problema da nacionalização da banca em Portugal não se explica em duas palavras: segundo Mário Nelson,  quando o Governo de Transição entrou em funções, à luz dos Acordos de Alvor, subscritos, em Janeiro de 1975, pelo MPLA, FNLA e UNITA com mandato para, entre outras coisas, “definir a política económica, financeira e monetária e criar as estruturas necessárias ao rápido desenvolvimento da economia de Angola”, havia a operar neste mercado uma sucursal do Banco de Angola (que, apesar do nome, era uma sociedade constituída e com sede em Portugal), com o privilégio da emissão de moeda e de desenvolver comércio bancário, assim como cinco bancos comerciais com participação portuguesa.

Um desses bancos era inteiramente de capital português e dois com participação de bancos não portugueses: o Banco Inter-Unido, com parte do capital detido por um banco norte-americano (First National City Bank of New York – CityCorp) e o Banco Totta-Standard, com participação do Standard Bank of South Africa, Ltd, detido por capitais sul-africanos e ingleses. 

As reacções às nacionalizações partem de todo o populoso espectro político e económico naqueles anos formado em Angola, com uma parte considerável a exigir a imediata negociação da transferência dos interesses do Governo português na banca para o Governo de Transição de Angola. 

Em 11 de Maio de 1975, o ministro da Economia do Governo de Transição, Vasco Vieira de Almeida, indicado por Portugal, apresentou um “Programa Económico de Angola”.

No domínio do sistema financeiro, o programa propunha transformar o Banco de Angola num banco exclusivamente comercial detido pelo Estado; tomada pelo Estado de pelo menos 51 por cento do capital de todos os bancos; obrigatoriedade de existência em mãos de nacionais de 70 por cento do capital dos bancos incluindo a participação do Estado; e a conclusão das negociações com o Governo português para a transferência para o Estado de Angola da propriedade do capital dos bancos angolanos pertencentes ao sector nacionalizado.

Mário Nelson cita Vasco Vieira da Almeida a declarar, 20 anos mais tarde, que o “Programa Económico de Angola” acabou sabotado a vários níveis dentro do Governo de Transição, onde tinham assento dois movimentos de libertação que não tinham no seu ideário a nacionalização dos bancos ou de qualquer tipo de empresas. 

Os confrontos entre militares do MPLA e da FNLA, iniciados em Março de 1975, provocaram uma rápida deterioração da situação económica e a falência da maioria das empresas, o que foi agravado pelo êxodo dos que, na colónia, detinham o poder e controlo administrativo e económico, dada a insegurança e incerteza quanto ao futuro, o que resultou na paralisação quase total do sector produtivo, com forte impacto na situação dos bancos. 

Aqui, a situação daquela época é descrita com a queda vertiginosa dos depósitos bancários, subida em flecha do crédito malparado, transferências ilícitas de capitais via bancos, fuga de quadros e encerramento de agências, diante de   administrações que nem sempre tomavam as medidas mais adequadas, “até porque muitos dos que delas faziam parte, também a preparem-se para irem embora, estavam mais preocupados em mandar capitais para o exterior em benefício dos accionistas ou de empresas dos seus países de origem”, segundo Mário Nelson.

O director-geral do Banco de Angola, prossegue, passou a ser recebido semanalmente no Ministério do Planeamento e Finanças e relatava as preocupações com a situação dos bancos: em meados de Julho informou que a maioria estava em quase falência, havendo um já tecnicamente falido, e que o Banco de Angola (que, na qualidade de Banco emissor, tinha a função de “financiador de última instância”), já não estava em posição de conceder mais empréstimos para fazerem face à falta de liquidez. 

A decisão e a intervenção 

Nessa altura, em Julho de 1975, “já não restavam dúvidas de que era preciso e urgente uma intervenção nos bancos para tentar evitar o descalabro total do sistema financeiro”.

A conjuntura daquela época era caracterizada pela intensificação dos combates em Luanda, o envolvimento de tropas portuguesas num ataque a uma delegação do MPLA, o envolvimento militar da África do Sul do apartheid ao lado de tropas de FNLA e da Unita e a declaração de guerra conta o MPLA proferida por Holden Roberto, em Kinshasa. 

Pelo que, quando posto ao corrente do projecto da intervenção na banca, Agostinho Neto manifestou-se cauteloso, afirmando que tinha de haver garantias de que as autoridades portuguesas não haveriam de interferir, até porque, escreve o autor, “o alto comissário português de então, que só saiu em 4 de Agosto, não era propriamente uma pessoa que simpatizasse com o MPLA”.

Segundo a fonte, a intervenção era uma medida de emergência e transitória que permitiria o imediato controlo da gestão dos bancos para evitar o pior para o país, até que houvesse condições para avançar com as negociações interrompidas e encontrar outra solução. 

Projectava-se a suspensão dos órgãos sociais dos bancos, colocando nas administrações pessoas que merecessem a confiança do Ministério do Planeamento e Finanças, supondo-se que só assim haveria a garantia de que as directivas seriam aplicadas, especialmente no que respeitava ao apertado controlo que se impunha de transferências de capitais para o exterior, para evitar o esgotamento das poucas reservas em moeda estrangeira ainda existentes.

Por outro lado, com a saída em massa dos portugueses, corria-se o risco de, em poucos dias, os bancos ficarem sem quadros de direcção, incluindo os próprios administradores, sendo depois mais difícil tomar as rédeas da gestão. 

A intervenção, que acontece a 14 de Agosto, consiste em suspender os órgãos sociais, nomeando-se uma Comissão de Gestão para substituir a administração de cada banco, sendo, ainda, decidido que seria criada uma comissão para coordenar e controlar a actividade das comissões de gestão, em medidas que tinham respaldo nos poderes do Governo de Transição.

“O processo foi desenvolvido em total sigilo, sendo do conhecimento de muito poucos o tipo de intervenção decidida e a data em que ocorreria. Para além do presidente do MPLA, do membro do MPLA no Colégio Presidencial, Lopo do Nascimento, e de três pessoas ao nível do Ministério do Planeamento e Finanças (o ministro, Saydi Mingas, a jurista Antonieta Coelho e eu próprio, que na altura estava a exercer o cargo de director-geral de Crédito e Seguros), talvez mais umas duas ou três pessoas da cúpula do MPLA, estivessem a par do que estava ser preparado”, escreve Mário Nelson. 

Porém, a partir de certa altura, afirma a fonte, não era mais possível manter o segredo a um nível tão restrito e, então, já quase em cima do dia 14 de Agosto, obtida a anuência do alto comissário e a “luz verde” de Agostinho Neto, foram envolvidas as estruturas do MPLA para mobilização dos empregados bancários militantes e simpatizantes, a fim de estarem preparados e ajudarem no que lhes fosse pedido. 

Foi solicitado ao Corpo de Polícia de Angola (CPA) que preparasse as condições para garantir a segurança das instalações dos bancos, tarefa que ficou a cargo do segundo comandante, Armindo do Espírito Santo, mas, mesmo assim, conseguiu-se que o segredo não fosse quebrado, o que era importante, pois, ao contrário, poderia ter-se assistido a uma corrida desenfreada à transferência de capitais para o exterior e ao roubo e destruição de arquivos.


  14 de Agosto: intervenção protege cofres e documentos

O primeiro passo era credenciar um representante do Ministério do Planeamento e Finanças para cada banco, dando-lhe poderes para receber a liderança da respectiva administração, nos termos do Despacho nº 80/75, assinado nesse mesmo dia por Lopo do Nascimento, o ministro do Planeamento e Finanças, e o ministro da Economia em exercício, Resende de Oliveira. 

Os cinco representantes escolhidos, dos quais dois eram quadros bancários, foram recebidos no Ministério cerca das 15h30 e acertaram-se os últimos pormenores e só depois, cerca das 16h00, foram recebidos os representantes dos cinco bancos intervencionados, a quem foi lido o Despacho 80/75.

Segundo Mário Nelson, “a surpresa foi total”, o que mostra que o segredo foi bem guardado. Cerca das 17h00 saíram para darem cumprimento ao despacho, cada um acompanhado do respectivo representante do Ministério e, por volta das 19h00, estava concluída a passagem dos poderes de gestão e, assim, concluída a primeira fase da intervenção em todos os bancos. 

Os trabalhadores bancários, lembra o autor, assumiram um papel muito importante nessa tarde do dia 14 de Agosto e nos dias seguintes. Quando os representantes do Ministério chegaram para formalizar a passagem dos poderes de gestão, foram recebidos pelos membros dos comités de acção do MPLA e das comissões de trabalhadores que, de acordo com as orientações traçadas pelo Ministério, já haviam iniciado a tarefa de recolha das chaves dos cofres e dos telex e montado segurança aos arquivos para evitar destruição e roubo de documentos.

Fonte: JA Online